O Óbito do Vivo

O Óbito do Vivo

Já decidi:

Vou celebrar a festa do meu próprio óbito. Vocês vão me julgar de maluku, tarado, chalado, chafrado não-bate bem da cabeça. Mas não me interessa, pois eu penso, e se penso existo, e se existo logo vocês vão me falar. Na verdade, quem que é maluku, tarado, chalado, chafrado, sem lá mais que, é aquele quem que morre e não antecipa a festa do seu próprio óbito, aquele quem que não goza a sua própria morte dele ainda vivo. Maluku é aquele quem que deixa (ou não deixa, então?) os outros festejar a sua própria festa dele do óbito. Porque, ja vi, e é sempre assim: para casar, os noivos escolhem a casa, procuram o salão bom, compram o fato novo do noivo e o vestido branco da noiva, pagam o anel de casamento, os sapatos; convidam os muitos amigos convidados e familiares mais amados, e tudo o mais, que a gente nunca sempre tem a capaz idade de saber; os aniversariantes, quem que completam os anos deles, escolhem o dia, compram eles próprios o bolo e em cima dele mandam escrever umas escritas que eles próprios querem escrever; compram as velas, convidam as pessoas convidadas para estarem presentes e trazerem presentes; compram as bebidas de cerveja, vinho tinto, gasosa, champanhe espumante; alugam um tocador de músicas; pagam o decorador para a decoração, preparam o coração para a emoção. E agora eu? Quando eu morrer, quem é que vai escolher todas as coisas para a celebraçao do meu próprio óbito? Já sei mesmo antes de o saber, que vocês vão me dizer que é os meus irmãos, ou é os meus amigos melhores, ou então é meus parentes viventes e conhecidos vizinhos, não sei mais lá quem. Não. Eu vos nego as vossas ideias todas juntas. Vai ser eu próprio, de nome completo verdadeiro do baptismo: José Carlitos, ou simplesmente Zé Calitas.

Já decidi:

Vou contactar um meu amigo melhor e vou lhe pedir para me ajudar nos preparativos da celebração do meu próprio óbito. A pessoa sempre hoje agora devia ter a capacidade de ver a celebração dele mesmo do seu óbito, da mesma maneira como tem a capacidade de ver e participar na festa dele mesmo de nascimento, de baptismo, de casamento, de promoção, de nomeaçao, de etc. Já sei, que vocês vão me julgar de maluku, tarado, chafrado, pirado, nao-bate bem de cabeça, etc. Mas uma coisa certa me anima a alma minha: meu amigo melhor – esse quem que vos falo dele aqui - sempre me entende. Sei que ele vai me compreender e sempre vai me dar razão na minha razão. Sempre sei que vai me acompanhar e me ajudar nos preparativos da celebração da festa do meu próprio óbito. Quero ser já morto antes de morrer. Quero já ser apagado ainda vivo na cabeça das pessoas. Quero dançar, beber muitas bebidas de cerveja, de vinho tinto, de gasosa, vinho espumante de champanhe, de tyafuluka, de kaporroto. Quero provar todas as comidas que vão comer os meus convidados da minha festa do meu próprio óbito. Quero olhar nos olhos das muitas pessoas que vão vir, quero ver quem que vão me chorar ainda mesmo antes de eu ser um homem morto. Quero ver quem é que me queria bem e quem que me odiava muito. Quero ver quem vai me chorar de brincar só - lagrima de crocodilo - e quem que vai me chorar mesmo seriamente de verdade. Quero contar nos meus dedos das mãos (e se não chegar vou contar mais nos dedos dos meus pés) quantas namoradas é que eu tinha afinal quando ainda eu era um vivo; quantas amantes afinal tinha todas juntadas. Eu penso que é meu direito consagrado num direito que deve de existir por aí de saber antes de morrer muitas coisas que eu não sabia vivo. Na festa do meu próprio óbito eu vou ter a oportunidade de ter a capacidade de ver afinal quem que foram os meus amigos de verdade. Vou ter a capacidade de ouvir um amigo orador erudito – um Mestre Tamoda - a me fazer um elogio fúnebre. Então, é aí que vou saber aquilo que nao sabia, é então que vou ficar no corrente daquilo que fui nas pessoas e daquilo que não fui na gente. Eu próprio sozinho é que vou arranjar esse orador erudito. Vai ser aquele meu amigo, quem que já vos falei dele aqui, cujo nome dele verdadeiro de registo civil não vou ainda descobrir. Ele é o melhor aluno que saiu da classe de língua angolêsa na nossa primeira sala da primária na “Escola 63” da Mapunda. Vou lhe pedir para ler muito e estudar antes muitos livros: Platão, Sócrates, Padre Vieira, Victor Hugo, Queirós, Luís de Camões, Santo Agostinho, Agostinho Neto, Júlio Dinís, Wanhenga Xitu, Virgílio, Shakespeare, Bocage, Pepetela, Óscar Ribas, Luandino Vieira, para ensaiar discursar já perante eu vivo, jazido de improviso num caixão preto na sua presença dele. Quando eu ficar feliz, quando o meu ouvido gostar e minha alma ficar santisfeita com o seu discurso dele de ensaio do elogio fúnebre, vou me erguer do caixão e vou lhe dizer chega, assim tá mbra bom, e ele vai parar e se preprar para o dia da celebração da festa do meu próprio óbito.

Já decidi:

No cemitério lá da Mintya, vou escolher um terreno, um lugar melhor aonde não vou ter chatices nem barulho de muita gente nas festas de farras nos fins-de-semana, de muitos caporroteiros bêbados a gritar alto, de muitos carros cansados na estrada a fazerem barulhos com os motores deles já de quinta-mão. Vou escolher o meu próprio terreno aonde eu vou ficar, sozinho, enterrado, sossegado, esquecido, quieto, apagado, secado, dormido. Meu próprio último lar, minha última morada de um homem que era vivo. Aí vou morar feliz, a saber muitas coisas de que fui na minha vida viva e na vida dos outros entes ainda viventes. Mas antes, vou já reservar um caixão preto na agência funerária, depois de sair da Conservatória aonde vou tratar a minha certificação de óbito. Ninguém vai me perguntar nenhuma pergunta, e, se por um acaso, um atrevido me perguntar o motivo que me motiva, eu vivo, a pedir já uma certificação do meu óbito de morto, vou lhe repreender e lhe responder que estamos na democracia; e quando me perguntar mais o que que eu entendo atrás da palvra democracia vou lhe falar aquilo que me falaram na minha primeira professora da primária na “Escola 63” da Mapunda, de que democracia é a pessoa escolher aquilo que ele quer mais melhor na vida dele. E eu na minha vida escolhi ser já homem morto antes de morrer. Depois vou já na Câmara Municipal alugar já o carro funerário e pagar o seu preço. Posso até dar uma gasosa neles para me priorizarem na lista. Afinal, sem dar uma gasosa a pessoa nunca mata a sua sede dele até de ser já morto ainda vivo nessa terra. Daí vou no decorador para me arranjar umas flores funerárias e decorar as mesas da festa do meu próprio óbito. Depois o meu amigo mais melhor - quem que vocês já sabem quem é - vai me ajudar a preencher os convites para os convidados. Eu próprio é que vou comprar as bebidas, vou alugar um roboteiro com um carrinho-de-mão na mão para carregar as grades. Vou ir mais depois a seguir na praça e contratar uma mulher-tia melhor cozinheira da praça para cozinhar uma boa cozinhada funerária de funji de calulu de peixe, fritar peixe frito, preparar moamba de ginguba com galinha viva. Vai haver mais funji de milho, para aqueles quem que vão vir do mato aonde não se come funji de bombom ou mandioka. O feijão nao vai faltar. Também vai ter boi no espeto. Vou pagar um disc joker afamado para tocar umas músicas funerárias, e vou comprar um baralho de cartas de sueca e café de milho torrado para as pessoas não dormirem à noite. Eu também vou jogar e vou conversar com as pessoas para saber o que que eles pensam em cima do meu komba, se a festa do meu próprio óbito está a bater bué ou se está a kuiar. Aí é que eu vou aproveitar já lhes dizer que no dia próprio que eu morrer mesmo de verdade, para não se preocuparem mais comigo, para não gastarem mais nenhum dinheiro, porque a festa do meu óbito é já essa mesmo. Para irem só depositar, como uma mercadoria, o meu corpo morto no terreno do cemitério da Mintya, que eu já escolhi e paguei a muito tempo, e depois me esquecerem só e voltarem para as suas casas deles.

Já estarei feliz pela sua presença deles e de saber que a festa do meu próprio óbito de vivo bateu bué e kuiou.
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Glossário de algumas palavras e expressões


Maluku – o mesmo que maluco

Tyafuluka – cerveja caseira à base de milho ou cevada, muito popular no região sul de Angola

Kaporroto – água-ardente caseiro

Mintya  - topónimo

Roboteiro – carregador, biscateiro

Moamba – oleo

Bombom – mandioca

Mandioka – o mesmo que mandioca

Komba – óbito

Bater bué – agradar, estar bom, estar às mil maravilhas

Kuiar – ser bom, estar doce, ser apetitoso,




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